Capítulo 2 – Coisas que o silêncio diz
Na volta para casa, Estrela olhava pela janela do carro enquanto Bruno dirigia. As luzes da cidade passavam como riscos sobre o vidro, e ela revivia mentalmente a noite: a dança, o olhar de Dante, o jantar. Estava ali ao lado do homem que dividia sua vida há quase seis anos… mas era como se o coração começava a se perguntar se era esse tipo de relacionamento que merecia.
— Você gostou da apresentação? — perguntou ela, com voz suave.
— Gostei sim. Não entendo muito dessas coisas, mas você parecia feliz lá em cima.
Ela sorriu por educação. Sabia que ele não falava por mal, mas doía o fato de que ele não enxergava a importância daquilo para ela.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Dante e Júlia chegavam em casa. O filho já dormia, deixado com a avó. Júlia tirou os sapatos assim que entrou, como fazia todas as noites.
— Foi bom sair um pouco — disse ela, abrindo um pacote de biscoitos.
— Foi, sim.
Dante sentou no sofá e ficou em silêncio por um tempo, como se tentasse reorganizar os pensamentos. A imagem de Estrela dançando vinha como uma lembrança involuntária. Os movimentos dela — leves, mas firmes — pareciam carregar algo mais profundo. Era arte, mas também era alma.
— A Estrela é amiga de quem mesmo? — perguntou, tentando soar casual.
— Da Patrícia, minha colega da academia. Ela faz aula com a Estrela há uns dois anos. Por quê?
— Nada… só achei ela interessante. Parece… intensa.
Júlia olhou para ele por um segundo, mas não disse nada. Guardou o pacote e subiu para o quarto.
Naquela noite, Estrela teve dificuldades para dormir. Deitou-se ao lado de Bruno, que já roncava suavemente. Virou para o lado oposto, puxou a coberta até o pescoço e deixou uma lágrima cair sem saber bem o motivo.
Já Dante, mesmo cansado, acendeu a luz do abajur ao lado da cama. Pegou um livro, abriu em qualquer página, mas não conseguiu ler. A imagem de Estrela voltava, insistente. Ele não sabia o que aquilo significava. Só sabia que não sentia algo assim havia muito tempo.
No dia seguinte, a vida continuou— com suas rotinas, horários e compromissos. Mas havia uma semente plantada. Silenciosa, talvez. Pequena, ainda. Mas viva. E os dois sabiam.
Na manhã seguinte, Dante e Júlia tomavam café em silêncio. O filho ainda dormia, e o som do relógio na cozinha parecia marcar não só o tempo, mas a tensão entre os dois.
— “Destino ou acaso”, hein? — Júlia rompeu o silêncio, sem encará-lo.
Dante ergueu os olhos do café.
— O que tem?
— Aquilo que você falou no jantar… parecia encantado com ela.
— Eu só estava conversando. Foi um comentário inocente.
— Inocente? — ela cruzou os braços. — Dante, você olhou pra ela como se tivesse encontrado algo perdido. E ainda fala em destino?
Ele suspirou.
— Eu só quis dizer que… às vezes, certas conexões acontecem sem a gente esperar.
— E você quer seguir essa conexão agora? — a voz dela saiu trêmula, mais magoada que furiosa.
— Claro que não. Eu só… me vi lembrando de coisas que fazia tempo que não sentia. Estar perto de alguém tão viva, tão entregue àquilo que ama… me despertou alguma coisa. Não é sobre ela. É sobre mim.
Ela abaixou os olhos, respirando fundo.
— Eu me esforço tanto, Dante. Faço tudo aqui. E você, você se ausenta emocionalmente e ainda acha que tem o direito de se emocionar por causa de outra?
Ele não respondeu. Sabia que qualquer palavra ali seria mal colocada.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Estrela fechava a sacola com suas sapatilhas. Estava prestes a sair para a aula com a turma das mulheres adultas. Bruno, sentado no sofá, desligou a TV assim que a viu pronta.
— Precisa que eu te leve? — perguntou, levantando-se.
— Não, amor. Já pedi o carro por aplicativo.
Ele assentiu e a encarou por um instante.
— Você fica bonita com essa roupa de aula… você fica viva — disse, com uma sinceridade meio tímida.
Ela sorriu surpresa, tocada pelo gesto.
— Obrigada, Bruno. Isso significa muito pra mim.
Ele assentiu de novo, como quem não sabia bem o que fazer com aquilo. Aproximou-se e deu um beijo leve em sua testa.
— Vai lá brilhar, Estrela.
Ela saiu com o coração leve — ainda em conflito, mas grata por aquele pequeno gesto. Bruno não era um homem de palavras doces. Mas ele tentava. À sua maneira, tentava.
Se passaram duas semanas. Estrela só queria esquecer tudo o que tinha acontecido, então pegou seu fone de ouvido, colocou sua roupa de corrida e saiu. Precisava respirar. Precisava não pensar. Mas cada música que colocava trazia a mesma imagem: os olhos dele. A forma como Dante a olhava.
Ela não podia negar que gostava da atenção. Gostava de ser vista. Especialmente por ele.
O passo acelerou. O coração acompanhava, mas por outros motivos. Quando dobrou a esquina da avenida de paralelepípedos, notou um carro vindo. Iria atravessar, então diminuiu. O carro passou um pouco rápido, mas ela o reconheceu. Era Dante.
Ela girou a cabeça com o movimento brusco. Ele também a viu. Os olhos se cruzaram num segundo distraído e intenso. Mas não estavam sozinhos. Júlia estava com ele.
Foi como um copo d’água em um incêndio interno — não apagou, mas confundiu tudo ainda mais. Por que isso a atingia?
Estrela seguiu sua corrida, tentando se convencer de que não sentia nada. Que aquilo não significava nada.
Mais tarde naquele mesmo dia, Dante dirigia devagar por uma outra parte da cidade, sem rumo certo. A avenida era de paralelepípedos, ladeada por árvores antigas que formavam um túnel verde. O rádio tocava baixinho uma canção antiga que ele mal ouvia, perdido em pensamentos. Não sabia por que tinha seguido aquele caminho — não fazia parte de sua rota. Só seguiu. O nome dela ainda ecoava de maneira estranha em sua mente. Estrela. Como alguém podia ter um nome tão simbólico… e parecer à altura dele?
Parou o carro por alguns segundos perto de uma praça quase vazia. Crianças brincavam ao longe. Um casal de idosos caminhava de mãos dadas. Aquele tipo de cena que costumava trazer conforto agora só ampliava a inquietação que ele tentava esconder até de si mesmo.
Ligou o carro de novo e foi embora.
Poucos minutos depois, Estrela passou pela mesma rua num carro por aplicativo. Estava atrasada, mas nem tanto. Atrasada de quê? Ela mesma não sabia. Atrasada da vida? De respostas? Daquilo que sentia falta e nem sabia explicar?
O carro fez a curva e ela teve um sobressalto. Um veículo, estacionado há poucos metros da praça, parecia o carro de Dante. Mesma cor, mesmo modelo. Seu coração acelerou por um instante, sem motivo. Esticou o pescoço discretamente, tentando confirmar. Mas o carro já tinha ido embora.
“Será que era ele?” — pensou. E por que isso a importava?
Na verdade… não era sobre Dante. Ela só gostava da forma como ele a olhava. Como se visse algo nela. Como se ela fosse… importante.
Mas o que Estrela realmente desejava — o que fazia seu peito apertar de verdade — era outra coisa. Era que Bruno a enxergasse assim. Que se importasse. Que ficasse com ciúmes, nem que fosse um pouquinho. Que sentisse medo de perdê-la. Queria que ele perguntasse mais do que “você quer que eu te leve?” Queria que ele dissesse “não vai hoje, fica comigo”.
Mas ele nunca dizia.
Ela suspirou, ajeitando a alça da bolsa no ombro. O carro estacionou na porta do estúdio. As outras alunas já entravam. Desceu, agradeceu ao motorista e respirou fundo antes de entrar.
Talvez ainda não fosse o momento.
Ainda era só o início de algo. Ou o fim de outra coisa. Nem ela sabia.
Mas sabia que estava despertando. E quando o coração começa a acordar… nem o silêncio consegue esconder por muito tempo.